quarta-feira, 5 de novembro de 2014

“Para o socego e tranquilidade publica das Ilhas”: fundamentos, ambição e limites das reformas pombalinas nos Açores. José Damião Rodrigues


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“Para o socego e tranquilidade
publica das Ilhas”: fundamentos,
ambição e limites das reformas
pombalinas nos Açores*


José Damião Rodrigues**


Pode-se dizer que Sebastião José foi mais ruidoso
como reformador, do que coerente como político.
Agustina Bessa Luís, Sebastião José.

     Este artigo apresenta uma reinterpretação das reformas pombalinas no atlântico português, propondo como estudo de caso os Açores. As reformas de 1766 são perspectivadas no contexto da crise fiscal do Estado e analisadas segundo a tradição cameralista, à luz dos conceitos de “razão de Estado” e de “polícia”, comentando-se os objetivos e os limites do programa reformista no quadro das relações centro-periferia.
Palavras-chave: Marquês de Pombal – Razão de Estado – Século XVIII


* Artigo recebido em janeiro de 2006 e aprovado para publicação em abril de 2006. Ele é uma versão condensada da conferência que apresentamos no âmbito da VIª Jornada Setecentista, organizada pelo CEDOPE, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 3 a 5 de outubro de 2005.
** Professor da Universidade dos Açores/CHAM. E-mail: jdamiaorodrigues@hotmail.com.
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     Os assinaláveis progressos registrados nas últimas décadas pelas historiografias portuguesa e brasileira permitiram rever alguns modelos interpretativos, moldados no paradigma da “centralização”, e desfazer — ou começar a desfazer — mitos e equívocos relativos ao Antigo Regime, no reino e no império português. No entanto, apesar das edições publicadas por ocasião do duplo centenário da morte do marquês de Pombal e de relevantes contribuições no campo da história económica e social, um dos períodos que menos se tem beneficiado com a renovação historiográfica é, em nosso entender, o reinado josefino, coincidindo com a presença de Sebastião José de Carvalho e Melo nos gabinetes do poder.
       De um modo geral, o período pombalino tem sido perspectivado mais em termos de ruptura do que de continuidade, buscando-se naquela as marcas da “modernidade” do Iluminismo. Segundo esta lógica, e coincidindo praticamente com a ascensão de Pombal, o Iluminismo adquiriu em Portugal uma “feição de Estado”, no contexto do “despotismo esclarecido”, verificando-se uma aliança entre Iluminismo e política. No âmbito do reformismo ilustrado português, Sebastião José de Carvalho e Melo seria “um agente do espírito científico iluminista” e, com ele, a monarquia pretenderia concretizar o projeto de formação de um novo quadro humano e institucional a serviço do centro político. Ora, tal linha interpretativa, assente numa representação holista e “otimista” do movimento ou do programa filosófico e cultural do Iluminismo, secundariza todo o esforço de revisão historiográfica que se tem operado desde a década de 1990 em relação ao conteúdo e ao uso das categorias históricas e analíticas “Iluminismo” e “despotismo iluminado”. Com efeito, embora sem conquistarem a unanimidade entre os historiadores, novos ângulos de análise modificaram o mapa conceptual do Iluminismo, chamando a atenção para a importância dos diferentes contextos nacionais e regionais e para a existência de vários centros de gravidade intelectual na Europa do século XVIII, o que se traduzia numa multiplicidade de vozes e de sentidos, em suma, de Iluminismos, em cujo contexto a França surge como o contra-exemplo. Em contraste com este estilhaçar do Iluminismo, e salvo algumas posições dissonantes ou mais reservadas, a maioria dos textos vindos a lume recentemente no universo lusófono mostra-nos ainda uma representação idealista e teleológica do Iluminismo em Portugal. Ora, apesar de ser possível detectar no conjunto do período dito pombalino as afirmações de um novo ideário — na sequência de resto, de um processo iniciado na primeira metade de Setecentos e onde pontificaram grandes nomes da cultura portuguesa —, cremos que se justifica uma certa prudência na aplicação uniforme de uma grade de leitura iluminista às décadas do reinado josefino. Com efeito, devemos atender à cronologia, ao peso das convenções herdadas, às tensões e às diferenças que existiram no seio do movimento das Luzes, mormente “a preponderância do alinhamento católico das Luzes em Portugal”, que introduz um contraste com algumas das correntes do pensamento iluminista europeu, e à coexistência do “antigo” e do “moderno”.

      Em suma, importa contemplar as continuidades e não ignorar a complexidade e a “contrapolaridade inquestionável” do Iluminismo, nomeadamente no espaço português e ibérico, sob risco de empobrecimento da história cultural e intelectual de Setecentos. Esta relativização da importância do período dito pombalino, enquanto momento de afirmação das Luzes em Portugal, sublinha “as limitações de abertura da modernidade do pombalismo” e a provável desconfiança do poder face ao fermento de idéias e a alguns dos princípios defendidos por certas correntes iluministas. Não é este o espaço para retomarmos o debate em torno do pombalismo, do seu “projeto” e eventual “modernidade” e dos respectivos fundamentos teóricos. Mas se, como defendem certos autores, existiu um projeto pombalino para as sociedades portuguesas, a do reino e as do império, interessa saber como é que a monarquia o procurou materializar, quem foram os seus agentes e quais as resistências que encontrou. É inegável o papel central que a legislação da monarquia detinha a nível do ordenamento social e das relações de poder. No entanto, se os textos legislativos estabeleciam as coordenadas de legitimidade que deviam balizar a atuação dos oficiais régios e o comportamento dos vassalos, a nível da sua aplicação, o resultado social caracterizava-se por uma amplitude de situações, que exigem ser estudadas para um melhor esclarecimento da “microfísica do poder”, isto é, da interação entre os atores sociais e da importância dos contextos locais nos jogos de poder e na concretização das práticas de dominação. 





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