21 • Tempo
“Para o socego e tranquilidade
publica das Ilhas”: fundamentos,
ambição e limites das reformas
pombalinas nos Açores*
José
Damião Rodrigues**
Pode-se
dizer que Sebastião José foi mais ruidoso
como
reformador, do que coerente como político.
Agustina
Bessa Luís, Sebastião José.
Este artigo apresenta uma reinterpretação
das reformas pombalinas no atlântico português, propondo como estudo de caso os
Açores. As reformas de 1766 são perspectivadas no contexto da crise fiscal do
Estado e analisadas segundo a tradição cameralista, à luz dos conceitos de
“razão de Estado” e de “polícia”, comentando-se os objetivos e os limites do
programa reformista no quadro das relações centro-periferia.
Palavras-chave:
Marquês de Pombal – Razão de Estado – Século XVIII
* Artigo
recebido em janeiro de 2006 e aprovado para publicação em abril de 2006. Ele é
uma versão condensada da conferência que apresentamos no âmbito da VIª Jornada
Setecentista, organizada pelo CEDOPE, Universidade Federal do Paraná, Curitiba,
3 a 5 de outubro de 2005.
** Professor
da Universidade dos Açores/CHAM. E-mail: jdamiaorodrigues@hotmail.com.
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Os assinaláveis progressos registrados nas últimas décadas pelas
historiografias portuguesa e brasileira permitiram rever alguns modelos
interpretativos, moldados no paradigma da “centralização”, e desfazer — ou
começar a desfazer — mitos e equívocos relativos ao Antigo Regime, no reino e
no império português. No
entanto, apesar das edições publicadas por ocasião do duplo centenário da morte
do marquês de Pombal e
de relevantes contribuições no campo da história económica e social, um dos
períodos que menos se tem beneficiado com a renovação historiográfica é, em
nosso entender, o reinado josefino, coincidindo com a presença de Sebastião
José de Carvalho e Melo nos gabinetes do poder.
De um modo geral, o período pombalino tem sido perspectivado mais em
termos de ruptura do que de continuidade, buscando-se naquela as marcas da
“modernidade” do Iluminismo. Segundo esta lógica, e coincidindo praticamente com
a ascensão de Pombal, o Iluminismo adquiriu em Portugal uma “feição de Estado”,
no contexto do “despotismo esclarecido”, verificando-se uma aliança entre
Iluminismo e política. No âmbito do reformismo ilustrado português, Sebastião
José de Carvalho e Melo seria “um agente do espírito científico iluminista” e,
com ele, a monarquia pretenderia concretizar o projeto de formação de um novo
quadro humano e institucional a serviço do centro político. Ora, tal linha
interpretativa, assente numa representação holista e “otimista” do movimento ou
do programa filosófico e cultural do Iluminismo, secundariza todo o esforço de
revisão historiográfica que se tem operado desde a década de 1990 em relação ao
conteúdo e ao uso das categorias históricas e analíticas “Iluminismo” e
“despotismo iluminado”. Com efeito, embora sem conquistarem a unanimidade entre
os historiadores, novos ângulos de análise modificaram o mapa conceptual do
Iluminismo, chamando a atenção para a importância dos diferentes contextos
nacionais e regionais e para a existência de vários centros de gravidade
intelectual na Europa do século XVIII, o que se traduzia numa multiplicidade de
vozes e de sentidos, em suma, de Iluminismos, em cujo contexto a França surge
como o contra-exemplo. Em contraste com este estilhaçar do Iluminismo, e salvo
algumas posições dissonantes ou mais reservadas, a maioria dos textos vindos a
lume recentemente no universo lusófono mostra-nos ainda uma representação idealista
e teleológica do Iluminismo em Portugal. Ora, apesar de ser possível detectar
no conjunto do período dito pombalino as afirmações de um novo ideário — na sequência
de resto, de um processo iniciado na primeira metade de Setecentos e onde pontificaram
grandes nomes da cultura portuguesa —, cremos que se justifica uma certa
prudência na aplicação uniforme de uma grade de leitura iluminista às décadas
do reinado josefino. Com efeito, devemos atender à cronologia, ao peso das
convenções herdadas, às tensões e às diferenças que existiram no seio do movimento
das Luzes, mormente “a preponderância do alinhamento católico das Luzes em
Portugal”, que introduz um contraste com algumas das correntes do pensamento
iluminista europeu, e à coexistência do “antigo” e do “moderno”.
Em suma, importa contemplar as continuidades e não ignorar a
complexidade e a “contrapolaridade inquestionável” do Iluminismo, nomeadamente
no espaço português e ibérico, sob risco de empobrecimento da história cultural
e intelectual de Setecentos. Esta relativização da importância do período dito pombalino,
enquanto momento de afirmação das Luzes em Portugal, sublinha “as limitações de
abertura da modernidade do pombalismo” e a provável desconfiança do poder face
ao fermento de idéias e a alguns dos princípios defendidos por certas correntes
iluministas. Não é este o espaço para retomarmos o debate em torno do
pombalismo, do seu “projeto” e eventual “modernidade” e dos respectivos
fundamentos teóricos. Mas se, como defendem certos autores, existiu um projeto
pombalino para as sociedades portuguesas, a do reino e as do império, interessa
saber como é que a monarquia o procurou materializar, quem foram os seus
agentes e quais as resistências que encontrou. É inegável o papel central que a
legislação da monarquia detinha a nível do ordenamento social e das relações de
poder. No entanto, se os textos legislativos estabeleciam as coordenadas de legitimidade
que deviam balizar a atuação dos oficiais régios e o comportamento dos
vassalos, a nível da sua aplicação, o resultado social caracterizava-se por uma
amplitude de situações, que exigem ser estudadas para um melhor esclarecimento
da “microfísica do poder”, isto é, da interação entre os atores sociais e da
importância dos contextos locais nos jogos de poder e na concretização das
práticas de dominação.
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